quarta-feira, 16 de abril de 2008

Nos olhos de quem vê


Ele estava esticado sobre o colchão, os olhos fixos no ventilador de teto, o suor desenhando o contorno do seu corpo estático. Pelas venezianas o farol dos carros criava desenhos passageiros na parede nua. A freqüência dos desenhos diminuía e denunciava outra madrugada lenta nas ruas. Ele não conseguia dormir. O sangue corria rápido e, realizados todos os rituais, ele ainda era dominado pelo medo sufocante de ter deixado para trás algum vestígio.
O sol já alaranjava o apartamento quando Ramiro trocou finalmente de posição e dirigiu-se ao chuveiro frio e a mais um dia de trabalho. Ele extraía dinheiro de quem já não possuía o suficiente para comprar um carro ao invés de enlatar-se nos ônibus decadentes da cidade.
Sua rotina era a mesma há muito tempo e apenas três vezes fora quebrada.
A primeira havia acontecido há dois anos, mas os detalhes ainda eram vívidos: o mendigo que o atormentava por comida, bêbado, suscitando qualquer sentimento estranho que lentamente o cegava e possuía até que ele decidisse drená-lo de alguma forma. A última gota de suor daquela agonia cruzou-lhe a têmpora em compasso com o último espasmo de horror na cara do mendigo. Ramiro, quando voltou a si, estava jogado no colchão, refazendo mentalmente seus passos e tentando convencer-se de que não havia meios de ser descoberto. A segunda vez havia sido diferente. Os olhos claros da adolescente contaram-lhe sonhos antes de se apagarem. E era a diferença da vida - mesmo com a semelhança da morte - que ele conseguia vislumbrar naqueles segundos derradeiros. Como se de alguma forma ele virasse um vigário no aguardo da confissão final.
A terceira vez fora a noite anterior. Ele tinha visitado seu pai de criação, um marceneiro (aposentado por invalidez) que o criou depois que seus pais faleceram. Embora convivesse com o velho desde os dez anos eles não conversavam nada além do trivial. O tempo mormacento, o movimento nos ônibus que aumentara, a segunda divisão do futebol. Naquele dia, a mesma coisa. O diálogo seguia viscoso, o calor deixava o velho lento e Ramiro de mau humor. A tarde foi ficando para trás, o sol se punha detrás dos prédios e o barracão do marceneiro tornava-se um teatro de sombras. Se alguém se desse o trabalho de acompanhar a peça daquela noite - em apresentação única! - teria visto o fim trágico. Entre um grunhido e outro, um formigamento subia da altura das costelas para os ombros de Ramiro e ele foi perdendo o controle para si mesmo - para a pulsação que o movia de tempos em tempos. Ele juntou as duas mãos, com o pescoço do velho entre elas e foi vendo verter das pupilas a surpresa de quem confia, mas se vê errado.
Na outra manhã, ele recebia o dinheiro e via as pernas passarem pela roleta com os olhos cansados e fundos. Outro dia e a cena era a mesma, mas o cansaço que era da noite inteira em claro tornou-se da vida. E ele acordava, comia, fazia a barba, cobrava, tornava a comer e dormia. O sangue já não corria, era turista sem pressa dentro de Ramiro, que vivia porque assim já estava fazendo há tanto tempo que não lhe parecia sensato sentar e morrer de repente.
O tédio engoliu quatro meses e numa manhã, similar a todas as outras, depois de acordar e comer, Ramiro foi barbear-se diante do espelho. Por um acaso ou não, escorregou-lhe a lâmina entre os dedos e um fio encarnado surgiu em sua face. Com a dor inesperada, seus olhos abriram de chofre e ele se viu no espelho, torso nu, vulnerável. Os momentos seguintes foram rápidos, na tentativa irônica de não parecer previsível. Ele deslizou a navalha de um lado a outro da garganta e fixou no espelho seu próprio olhar: híbrido perfeito de sentimentos que ele nunca tivera o prazer de observar antes. Não teve sequer tempo de lamentar por ser encontrado com parte do rosto barbeada e a outra não.

Um comentário:

Athos Aguiar disse...

Meu, sério, tu tem que guardar essas coisas e publicar!